domingo, 24 de março de 2013

Triângulo


O cheiro mortiço dos pingos descascando o parapeito, a ladainha suicida da água calha abaixo, a latência seca no estômago, tudo chamava o seu nome sem parar, atropelando os planos para a liberdade inédita. Fosse como fosse, era melhor o lado de lá da vidraça, com tudo o que ele permitia e ameaçava, do que a chuva climatizada do exílio. Ângela ficou uns minutos ali debruçada, depois se secou, vestiu a roupa da véspera, fechou a mala magra e deixou o hotel.
Ouvindo o ronco cronometrado do trem, Ricardo tirou do bolso o bilhete remendado e acomodou a mala na boca do partidor. Quase na hora, e ele ainda não tinha certeza.  Antecipar o retorno não fora ideia sua. Por ele, ficavam pelo menos até não haver mais tanta ameaça nos comentários. Mas a convicção de Ângela e a cerveja da noite passada lhe roeram os argumentos normalmente riscados a régua e que o faziam mais orgulhoso que feliz.  De qualquer modo, nada adiantava: a sombra dela já serpenteava nos trilhos.
- Vamos lá? - os cabelos úmidos davam à jovem  um ar de oportuno desamparo.
- Eu pensei melhor hoje de manhã – tateava a oportunidade - não dá pra tomar uma decisão dessas de cara cheia. Ainda dá pra desistir...
- Desistir? Desistir foi quando a gente fugiu pra cá que nem criminoso... Além do mais, foi a Miranda quem quis assim. Esqueceu? Chega de adiar. Hoje a gente janta na nossa casa. Ninguém teve culpa.
Embarcaram enfim, enquanto o temporal ia rascunhando nos trilhos o caminho pela frente.

...

Não foi de repente.  Há tempos Miranda vinha sentindo vertigens que logo passavam e que nem sempre se repetiam. Talvez por medo de acabar como a mãe, condenada à compaixão de todos e ao sacrifício de uns poucos, ignorou os sintomas, tocando a vida sem planos nem pensamentos sombrios.
Passava a maior parte do tempo no jardim, enterrando as unhas naquele solo obediente e sentindo uma eletricidade morna lhe subir pelas veias. Ali agachada, arrancando as ervas daninhas do amor-perfeito, esticou o braço para alcançar o telefone que tocava do outro lado do canteiro quando tudo escureceu em volta. A última coisa que sentiu foi um gosto primitivo de terra revirada.  E agora, quem ia cuidar das flores? Acordou desorientada entre desconhecidos. O cheiro estéril e as falas costuradas levavam e traziam uma lucidez que durou o suficiente: estava no hospital.

...

Já tinha escurecido quando Ângela e Ricardo chegaram. Ninguém mais na rua de paralelepípedos e casas geminadas, só silhuetas no fundo amarelo das janelas, jantando e vendo TV. Melhor assim. Exceto pelo canteiro de amor-perfeito dominado pelo mato, a casa continuava envolta na habitual atmosfera de harmonia, a presença de Miranda impressa em cada parede, cada grão de poeira suspensa ou em repouso, onde era claro e onde era escuro. Aquele equilíbrio quebradiço pesava sobre os ombros de Ricardo mesmo depois de cinco anos. Ninguém teve culpa.
 ...

Miranda não acordou da anestesia. O tumor e o coma transformaram sua mente num borrão de lembranças inacessíveis. Aconteceu exatamente como ela previra. Não havia outra coisa a fazer. Ninguém tinha culpa.

...


Ângela e Ricardo levantam cedo para ir ao hospital. Visitam a irmã pela última vez. É uma despedida sem palavras e sem desculpas. Entregam ao médico a autorização para desligar os aparelhos, e voltam para casa antes que a vizinhança acorde.

domingo, 10 de março de 2013

humanos



08:30. 19 graus em frente à prefeitura. Gente indo, vindo e ouvindo nos fones dos telefones. Vendo no piloto automático. 
O chafariz tombado do século XVIII atrás das grades não chama a atenção. Os rasantes dos pombos chamam. Espaço aéreo perigosamente congestionado.
A mulher para, atira pipoca no chão e redesenha a paisagem. O céu clareia, o chão escurece. A cada arremesso, o alvoroço da disputa, o espasmo sincronizado da mancha cinza sobre a calçada. Mas o balé dos bichos não impressiona a gente. 
08:35. 19 graus em frente à prefeitura. Vou indo. Não tenho fone, tenho fome.



vaga-lume (poesia prosaica a quatro mãos)



Farol de neblina
mente pirilampa
no painel do carro a estampa
mulher, filha, já faz quanto?
ele ainda lúcido
elas ainda meninas
a luz apaga num instante
e quando acende já era outro chão
vazio
golpe seco
seca o frio
Os olhos correm afoitos em volta do carro, se fixam na janela e nos retrovisores. As luzes se apagaram. Nada se vê. Só o silêncio de metal do automóvel. Nina, a mais velha, pega uma lanterna dentro da bolsa e aponta o feixe de luz para o motorista. Ele, que antes ocupava o cargo de avô, só consegue dizer: "Não vejo mais. Não vejo nada"
Olhos secos, mãos molhadas
cobertor e um rajada de vento
um momento de dor aliviada
um luz, uma cruz, de novo a estrada
engolindo a sombra branca borrifada
noite que não passa de mais um esquecimento
que não sabe mais
que não teme mais
que não sente mais nada.

Mara e Wagner