O cheiro mortiço dos pingos descascando o parapeito, a ladainha
suicida da água calha abaixo, a latência seca no estômago, tudo chamava o seu
nome sem parar, atropelando os planos para a liberdade inédita. Fosse como
fosse, era melhor o lado de lá da vidraça, com tudo o que ele permitia e ameaçava,
do que a chuva climatizada do exílio. Ângela ficou uns minutos ali debruçada,
depois se secou, vestiu a roupa da véspera, fechou a mala magra e deixou o hotel.
Ouvindo o ronco cronometrado do trem, Ricardo tirou do
bolso o bilhete remendado e acomodou a mala na boca do partidor. Quase na hora,
e ele ainda não tinha certeza. Antecipar
o retorno não fora ideia sua. Por ele, ficavam pelo menos até não haver mais tanta
ameaça nos comentários. Mas a convicção de Ângela e a cerveja da noite passada lhe
roeram os argumentos normalmente riscados a régua e que o faziam mais orgulhoso
que feliz. De qualquer modo, nada
adiantava: a sombra dela já serpenteava nos trilhos.
- Vamos lá? - os cabelos úmidos davam à jovem um ar de
oportuno desamparo.
- Eu pensei melhor hoje de manhã – tateava a oportunidade -
não dá pra tomar uma decisão dessas de cara cheia. Ainda dá pra desistir...
- Desistir? Desistir foi quando a gente fugiu pra cá que
nem criminoso... Além do mais, foi a Miranda quem quis assim. Esqueceu? Chega
de adiar. Hoje a gente janta na nossa casa. Ninguém teve culpa.
Embarcaram enfim, enquanto o temporal ia rascunhando nos
trilhos o caminho pela frente.
...
Não foi de repente.
Há tempos Miranda vinha sentindo vertigens que logo passavam e que nem
sempre se repetiam. Talvez por medo de acabar como a mãe, condenada à compaixão
de todos e ao sacrifício de uns poucos, ignorou os sintomas, tocando a vida sem
planos nem pensamentos sombrios.
Passava a maior parte do tempo no jardim, enterrando as
unhas naquele solo obediente e sentindo uma eletricidade morna lhe subir pelas
veias. Ali agachada, arrancando as ervas daninhas do amor-perfeito, esticou o
braço para alcançar o telefone que tocava do outro lado do canteiro quando tudo
escureceu em volta. A última coisa que sentiu foi um gosto primitivo de terra
revirada. E agora, quem ia cuidar das
flores? Acordou desorientada entre desconhecidos. O cheiro estéril e
as falas costuradas levavam e traziam uma lucidez que durou o suficiente:
estava no hospital.
...
Já tinha escurecido quando Ângela e Ricardo chegaram.
Ninguém mais na rua de paralelepípedos e casas geminadas, só silhuetas no fundo
amarelo das janelas, jantando e vendo TV. Melhor assim. Exceto pelo canteiro de
amor-perfeito dominado pelo mato, a casa continuava envolta na habitual
atmosfera de harmonia, a presença de Miranda impressa em cada parede, cada grão
de poeira suspensa ou em repouso, onde era claro e onde era escuro. Aquele
equilíbrio quebradiço pesava sobre os ombros de Ricardo mesmo depois de cinco anos.
Ninguém teve culpa.
Miranda não acordou da anestesia. O tumor e o coma
transformaram sua mente num borrão de lembranças inacessíveis. Aconteceu
exatamente como ela previra. Não havia outra coisa a fazer. Ninguém tinha
culpa.
...
Ângela e Ricardo levantam cedo para ir ao hospital. Visitam
a irmã pela última vez. É uma despedida sem palavras e sem desculpas. Entregam ao
médico a autorização para desligar os aparelhos, e voltam para casa antes que a
vizinhança acorde.