No meu jardim tem uma roseira que namora duas luas prisioneiras.
domingo, 10 de agosto de 2014
quarta-feira, 6 de agosto de 2014
Timóteo
Ficava horas completamente imóvel, sentado à cabeceira da
cama a velar o sono dos parentes. Desde criança Timóteo gostava de ver a irmã,
o pai, a mãe dormindo, de especular se era sonho bom ou pesadelo, se era um
segredo ou um número para jogar no bicho. Vez ou outra, escapavam nomes e até
frases inteiras no atropelo abafado do sono. Quando o sonhador acordava fora de
hora e dava de cara com o menino espiando, era inevitável o safanão. Mas, como
não há esquisitice que resista à conivência em família, ninguém mais ligava.
Timóteo se tornou um rapaz sem namorada nem amigos.
Enfarava-lhe o convívio em vigília, recheado de urgências repetidas. Preferia
adivinhar sonhos inéditos. Tentara sem sucesso que alguns colegas da faculdade
lhe servissem de cobaia na adivinhação; as moças consideraram uma cantada
barata demais, e os rapazes também. Nem assim ele desistiu, passou a mentalizar
os sonhadores a distância através de viagens astrais proporcionadas por um chá especialmente mofado e potencializadas por um rito que
aprendera num livro anônimo: deitava-se nu, olhos arregalados, no quarto
saturado de luz branca e nesse devaneio flagelante viajava, experimentava o
conforto da contemplação imaculadamente passiva, o direito de ser um deus que
admirava a criação de outro deus, sondando mistérios sob uma cortina de opaca
imaterialidade, sem sucesso e sem frustração. Aquela remota conexão lhe
permitia escolher sem pressa, decidir sem culpa e desistir sem remorso.
Com o passar dos anos, Timóteo aprendeu atalhos para passar
o máximo de tempo com quem quer que dormisse por mais de duas horas seguidas:
frequentava berçários, visitava pacientes em coma, inscrevia-se em seminários
de recursos humanos... Mas, quanto mais velho ficava, mais as oportunidades
escasseavam, e a peregrinação lhe consumia o corpo e a lucidez. Certa
madrugada, vagando pelo corredor de um hospital, o bafio do necrotério lhe acordou o juízo: vale a pena adivinhar o sonho que
o sonhador mata assim que acorda?... Apertou o passo o quanto pode. Entrou
no primeiro quarto. O sonho não morre se o
sonhador não despertar...
quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014
Hesitação
Seis
horas. A mulher na janela do décimo andar abre os braços para o sol que se põe,
os carros que buzinam, e o burburinho pastoso dos curiosos na calçada. A paisagem inteira se dilui numa calda amarelo-queimado escorrendo lá embaixo,
enquanto o seu pé esquerdo vai e vem, pendurado no peitoril. Um movimento, e
tudo estaria acabado. Mas ela não completa o passo. Recua e
avança num moto pendular. A plateia grita.
Pula! Pula! Pula! A mulher reconhece algumas das vozes, e chora um choro seco e desiludido. Por mais que apele à memória dos seus afetos e à louça esperando na pia, que sacuda os braços e tome fôlego, continua presa à negra coluna no meio do quarto. Ensaia um riso no canto da boca quando percebe que, às vezes, não ter escolha é uma bênção.
Pula! Pula! Mas os olhos já estão injetados demais, e a claridade da janela foge para onde ela não alcança. Os gritos mínguam. Os afazeres perdem a urgência. Os rostos viram borrões em amarelo e cinza. O ar imóvel nos pulmões dá sono, vontade insuportável de abraçar os joelhos numa lembrança antiga e líquida. Exceto a mulher, agora tudo no quarto se move em direção à negra coluna de fumaça, centrifugado num anel leitoso que cresce e a encapsula num sono materno e inerte.
Pula! Pula! Pula! A mulher reconhece algumas das vozes, e chora um choro seco e desiludido. Por mais que apele à memória dos seus afetos e à louça esperando na pia, que sacuda os braços e tome fôlego, continua presa à negra coluna no meio do quarto. Ensaia um riso no canto da boca quando percebe que, às vezes, não ter escolha é uma bênção.
Pula! Pula! Mas os olhos já estão injetados demais, e a claridade da janela foge para onde ela não alcança. Os gritos mínguam. Os afazeres perdem a urgência. Os rostos viram borrões em amarelo e cinza. O ar imóvel nos pulmões dá sono, vontade insuportável de abraçar os joelhos numa lembrança antiga e líquida. Exceto a mulher, agora tudo no quarto se move em direção à negra coluna de fumaça, centrifugado num anel leitoso que cresce e a encapsula num sono materno e inerte.
Seis
e meia o trânsito é bloqueado em frente ao prédio. As pessoas da calçada são retiradas à força por medida de segurança. Vão para casa a pé e decepcionadas, acompanhar pela TV o desfecho do incêndio. Postar,
compartilhar e curtir.
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