segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Papel picado


Francisco picava papéis numa empresa do governo. Empresa grande, dessas que produzem muita burocracia. O que não era aproveitável ia para a reciclagem. Trabalho ecologicamente correto, e consideravelmente volumoso.
Oito da manhã, mal Francisco batia o ponto na repartição, já tinha uma pilha esperando. Da mesa ao lado, Amélia lhe sorria servil. Assim ironicamente apelidada pelo pessoal do RH, a fragmentadora de papel nada tinha de humilde; era uma máquina de última geração, importada, controles digitais automáticos, toda em preto e prata e linhas aerodinâmicas. Fora comprada no apagar das luzes da última gestão. Era temperamental. Se não fosse operada estritamente conforme o manual, podia mastigar até um braço magro, ou mesmo um salário magro que escorregasse do bolso por distração.
Era magro o salário de estagiário. Mas os sonhos de Francisco não. Ter uma Ferrari vermelha igual à da tela do computador, ter uma casa no Moinhos, ter Micaella – ah!... que mulher a mulher do Gordo!...Como é que uma deusa daquelas foi cair justo na lábia do Armando?... Logo ele que nem carro tinha, nem morava em lugar nenhum... Só podia ser coisa daquela papelada.
-    Bom dia, Francisco.
-    Bom dia, seu Armando. (gordo patético - pensava entre dentes)
-    Vou te deixar esses papéis aqui pra descartar, tá? Vê se dá uma prioridade, hein?
-    É pra já, seu Armando.
Todo dia era a mesma coisa. Logo depois do almoço, lá vinha o Gordo com o bafo de cebola e cafezinho e os tais papéis pra descartar com prioridade. Será que ele beijava Micaella com aquela boca indigna? Será que Micaella sabia que o marido mandava descartar toneladas de papel todo dia? Será que ela sabia o que diabos tinha naqueles papéis???
Francisco não sabia. Nunca tinha olhado. Era antiético espionar o lixo dos chefes. Não, ele não olhava, mas se divertia imaginando os segredos pestilentos daquelas folhas que viravam tirinhas inofensivas na obscura boca da Amélia.
Aquela noite Francisco demorou a pegar no sono. Um calor além do normal vertia das paredes da quitinete; no teto baixo, o ventilador dava voltas cada vez mais espichadas... Um desfile de rostos lhe assombrava por entre as pás. Micaella ria, o Gordo ria, Amélia ria dele. Todas as bocas escancaradas, tirinhas de papel no lugar dos dentes tentando lhe dizer uma coisa... Mas ele não conseguia ler por mais que apertasse os olhos... Tudo fragmentado e pastoso... Acordou suado e atrasado. Nem teve tempo de tomar banho. Nem teve outro pensamento o dia inteiro. O que os papéis queriam lhe dizer? Os papéis...
Quando chegou à repartição, Amélia lhe sorriu com uma cumplicidade profética, como se lhe adivinhasse. De tarde o Gordo trouxe mais do que papéis. Trouxe Micaella.  Ela parecia nervosa amassando um pequeno envelope pardo entre as mãos muito brancas... Aquelas unhas vermelhas nas pontas dos dedos... Sem o Gordo notar, enfiou o envelope no meio da pilha, e deu uma olhada significativa para Francisco. Uma coincidência? Um sinal?... Não trocaram palavra, mas o sonho e o sorriso de Amélia, e aquele olhar... Seria uma premonição? Francisco sentiu um frio na boca do estômago. E lembrou que não comia nada desde ontem.
O refeitório já estava vazio àquela hora da tarde. Sentado na cabeceira da mesa de 40 lugares, Francisco ruminava a frio. O que o sonho queria lhe dizer? O que os papéis queriam dizer? O que Micaella queria? Engoliu a última garfada do risoto mal requentado, e tomou a decisão: não dava mais pra adiar, ia ler os papéis do Gordo. Deixou meio copo do suco de soja pra trás.
Condescendente, curiosa até, Amélia concordou em esperar pela investigação. Francisco chaveou a porta do aquário canelado, agachou-se diante da pilha que jazia no chão, e leu a primeira folha. No início, constrangido e excitado pela transgressão inédita. Leu mais uma, e mais uma, e mais... Mas será possível?... Hesitou. Depois riu. Gargalhou em silêncio. Terminou comovido. Quem diria... Quem diria, hein, Amélia? O Gordo escrevia versos! Bons versos. Então, por que mandava picar tudo???  
Ainda estava tentando entender a sandice do Gordo, quando chegou ao envelope pardo. Tinha uma fotografia ali dentro. Mais que isso. Era a peça que faltava no quebra-cabeça... Desde que ele tivesse as outras peças...
No dia seguinte, Micaella voltou à repartição. Francisco lhe devolveu o olhar e o envelope.  Ela percebeu que a foto não estava mais ali, e que chegara a hora de contar a história toda, enquanto o Gordo pegava café na máquina.
-    A gente se conheceu na noite de autógrafos do primeiro livro dele. – ela sussurrava, e Francisco tinha que chegar mais perto – Foi amor à primeira vista, logo na primeira página eu convidei ele pro meu apartamento. – ela senta no corrimão da escada.
-    Hum...
-    Ele tem muito talento, a carreira ia decolar, mas... – cruza a perna esquerda
-    Mas...?
-    O Armando não teve culpa, foi um acidente. Como é que ele ía adivinhar que o Nandinho tava descendo a serra a 140 bem na hora que ele ligou pra contar do contrato com a editora? Na foto tem tanto ferro retorcido que não dá pra ver nem a placa do carro! Quanto mais reconhecer o corpo... – cruza a perna direita agora
-    ?!...
-    Depois que o irmão morreu, o Armando nunca mais publicou. Toda noite ele escreve, passa em claro, e eu junto...  No dia seguinte... tu já sabes, né. – descruza as pernas finalmente.
Francisco ouve tudo num fôlego só. Mas não sente pena. Nem do Gordo nem de Micaella nem do irmão morto. Só sente alívio. Por não ter um irmão daqueles e por não ter uma mulher daquelas. Por não ter uma vida fragmentada pela dúvida e pelo remorso, cheia de pontas soltas. Melhor assim. Cada um tem a felicidade e a infelicidade que lhe convém (era mais ou menos isso que a mãe lhe dizia).
O Gordo volta do café e deixa mais um calhamaço. Enquanto Micaella vai embora para nunca mais voltar, Francisco lubrifica Amélia. Afinal, teriam serviço dobrado hoje.

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