quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Hesitação

Seis horas. A mulher na janela do décimo andar abre os braços para o sol que se põe, os carros que buzinam, e o burburinho pastoso dos curiosos na calçada. A paisagem inteira se dilui numa calda amarelo-queimado escorrendo lá embaixo, enquanto o seu pé esquerdo vai e vem, pendurado no peitoril. Um movimento, e tudo estaria acabado. Mas ela não completa o passo. Recua e avança num moto pendular. A plateia grita.
Pula! Pula! Pula! A mulher reconhece algumas das vozes, e chora um choro seco e desiludido. Por mais que apele à memória dos seus afetos e à louça esperando na pia, que sacuda os braços e tome fôlego, continua presa à negra coluna no meio do quarto. Ensaia um riso no canto da boca quando percebe que, às vezes, não ter escolha é uma bênção. 
Pula! Pula! Mas os olhos já estão injetados demais, e a claridade da janela foge para onde ela não alcança. Os gritos mínguam. Os afazeres perdem a urgência. Os rostos viram borrões em amarelo e cinza.  O ar imóvel nos pulmões dá sono, vontade insuportável de abraçar os joelhos numa lembrança antiga e líquida. Exceto a mulher, agora tudo no quarto se move em direção à negra coluna de fumaça, centrifugado num anel leitoso que cresce e a encapsula num sono materno e inerte. 
Seis e meia o trânsito é bloqueado em frente ao prédio. As pessoas da calçada são retiradas à força por medida de segurança. Vão para casa a pé e decepcionadas, acompanhar pela TV o desfecho do incêndio. Postar, compartilhar e curtir.

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